"Como confunde uma marmita com um revólver?", perguntou a mãe do jovem negro morto a tiros pela Polícia Civil, na tarde de quarta-feira (20), durante operação de combate ao tráfico de drogas no Morro do Piolho, comunidade da Zona Sul de São Paulo.
Fabiana Hoytil Araújo, de 41 anos, falou à reportagem que testemunhas lhe contaram que o filho dela, Gabriel Augusto Hoytil Araújo, de 19 anos, não estava armado nem envolvido com entorpecentes quando foi baleado na cabeça e na coxa por um grupo onde estavam seis policiais civis do 96º Distrito Policial (DP), no Brooklin.
Dois dos agentes dispararam contra Gabriel, segundo eles, para se defenderem depois de verem o rapaz traficando, ameaçando atirar com uma arma e ouvirem tiros de "criminosos" na comunidade. Posteriormente os policiais disseram que a arma que estava com o jovem era de brinquedo.
"Ele [Gabriel] não precisava ser morto daquele jeito. Nem chegou a comer a marmita. Atiraram no meu filho sem defesa para ele. Não perguntaram nada. Me disseram que os policiais confundiram uma marmita com um revólver e atiraram. Que mundo é esse que matam primeiro para depois perguntar?", comentou Fabiana nesta quinta-feira (21).
A informação de que o jovem foi morto quando segurava a marmita foi dada inicialmente pela Ponte Jornalismo, na quarta-feira (20).
Segundo Fabiana, que trabalha no serviço público de Saúde, seu filho não morava na comunidade do Morro do Piolho. Tinha ido lá apenas para se alimentar depois de vender garrafas d'água para motoristas nos semáforos numa das esquinas da Avenida Roberto Marinho. O jovem residia com a mãe, o padrasto, dois irmãos gêmeos de 12 anos e o avô materno no bairro do Jabaquara, também na Zona Sul.
"Era um menino bom, carinhoso. Como a polícia entra numa comunidade atirando e matando? Eu não quero que esse crime fique impune. Tirou a vida de um ser humano, um menino de 19 anos que tinha muita coisa para viver. Estou chorando a morte do meu filho hoje, amanhã e depois..."
Segundo a aposentada Ana Lúcia Custódio da Silva, de 56 anos, irmã de Fabiana e tia de Gabriel, o sobrinho chegou a praticar jiu-jitsu e muay thay no Jabaquara. "Era um menino cheio de vida. Não vejo razão para ele ter sido morto pela polícia", disse ela, que espera enterrá-lo somente no sábado (23). "Arrecadamos dinheiro para ajudar nas despesas do velório e sepultamento, mas não tem vaga nos cemitérios que procuramos. Então ainda não sabemos onde será direito o enterro."
O que dizem os policiais
O caso foi registrado como "homicídio simples", sendo "morte decorrente de intervenção policial", e tráfico de "entorpecentes" no 96º DP e no Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). O DHPP investiga o caso porque ele envolve policiais na ação que deixou um suspeito morto.
De acordo com o registro policial do DHPP, Gabriel estava com uma arma de brinquedo e um bala de arma de fogo. Também foi apreendido o relógio que ele usava, segundo o boletim de ocorrência (BO).
O documento do 96º DP informa que ele tinha passagens policiais anteriores por infrações cometidas quando era adolescente: roubo e tráfico de drogas. E menciona que foram apreendidos com Gabriel: 58 invólucros, 4 tubos e 209 supositórios de cocaína; 81 papelotes e um invólucro de maconha; e 146 papelotes de crack. Além disso, também encontraram com ele uma bolsa, dois porta-moedas e R$ 128,25, segundo o registro.
Segundo o BO do 96º DP, o jovem foi baleado depois que os policiais viram Gabriel vendendo drogas. "Os policiais tentaram abordá-lo, ocasião em que esse reagiu, exibindo uma pistola preta, sendo efetuado disparos pelos policiais, bem como sendo ouvidos outros disparos oriundos da comunidade", informa trecho do documento, no qual constam as versões dos agentes.
O histórico da ocorrência do DHPP, no entanto, informa que o caso é, "em tese", de "resistência" e "morte decorrente de intervenção policial ocorrida às 14h29, especificamente na Rua Cristóvão Pereira", no bairro do "Campo Belo".
Ainda segundo o documento do DHPP, o corpo de Gabriel foi encontrado "coberto por manta metálica, trajando calça jeans azul, bermuda azul sob a calça, camiseta branca e blusa de moletom", com "três lesões" de tiros: na coxa e nádega esquerda e outro na região da cabeça (no lado esquerdo da mandíbula).
"Não teve troca de tiros", disse o ativista de direitos humanos Juneo Videira, da ONG Mochileiros de Cristo e articulador da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que estava no Morro do Piolho no momento que a Polícia Civil entrou na comunidade na tarde de quarta. "Ouvi dois tiros".
Mas num comunicado divulgado posteriormente, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) não confirmou se os supostos criminosos atiraram e se os policiais revidaram atirando.
Segundo Juneo, ele viu o momento que um dos disparos foi dado para o alto por um policial civil, que depois deteve uma mulher por suspeita de tráfico de drogas. Em seguida, contou ter ouvido um outro tiro e correu até o local para ver, onde encontrou Gabriel ferido e caído numa viela da comunidade.
"Um menino morreu. A situação é que ele estava com uma marmita na mão", diz Juneo num vídeo que gravou e colocou no Instagram da ONG Mochileiros de Cristo.