Desde a emergência do coronavírus, nunca o aparecimento de novas mutações e linhagens preocupou tanto cientistas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e autoridades de saúde quanto agora. Em pouco mais de um mês, foram identificadas mais alterações genéticas potencialmente perigosas no Sars-CoV-2 do que em todo o período precedente da pandemia. O coronavírus muda e se adapta à medida que mais pessoas se expõem a ele, renovando e impondo um ciclo vicioso à pandemia. Em tese, mutações como a E484K, que circula no Brasil, e a britânica N501Y podem tornar o vírus mais transmissível, levar a reinfecções e ainda prejudicar a eficácia das vacinas. Tudo isso precisa ser ainda investigado, mas não pode ser descartado. — Há mais mutações no Sars-CoV-2 em circulação no Brasil e no mundo, e isso é resultado do aumento da propagação da pandemia. Antes encontrávamos novas linhagens com uma ou duas mutações. Agora, elas apresentam de 15 a 20 mutações, algumas delas importantes — afirma o virologista Fernando Rosado Spilki, coordenador da Rede Corona-ômicaBR/MCTI, criada para a vigilância genômica do coronavírus. Ele estima que de sete a nove linhagens do coronavírus estejam em circulação no Brasil neste momento, cinco delas são recentes. E vigilância genômica nada mais é do que monitorar as mudanças e a dispersão do coronavírus por meio de seu sequenciamento genético. Pequeninas alterações no código genético podem fazer grande diferença na forma como ele se propaga ou escapa do ataque do sistema imunológico humano. A maioria das mutações não representa nada. Mas algumas podem fazer diferença de vida e morte para, respectivamente, o vírus e os seres humanos. São essas que cientistas buscam com o sequenciamento genético de amostras de vírus de pessoas que contraíram Covid-19. Mutações são comuns em vírus, mas, quanto mais pessoas se expõem ao vírus, mais ele tem chance de se propagar e Mudar.
No Brasil demos muito espaço para o vírus evoluir. Com o país funcionando como se não houvesse pandemia e sem vacina, temos o ambiente perfeito para a emergência de mutações. E quanto mais demorarmos a vacinar, mais espaço damos para o vírus mutar — frisa Spilki. Ele adverte que as mutações com potencial de afetar a proteína alvo das vacinas são um sinal de alerta que não pode ser ignorado, um novo desafio. E um desafio em expansão. Esta semana, por exemplo, Spilki e a coordenadora do Laboratório de Bioinformática do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), Ana Tereza Vasconcelos, esperam concluir um estudo com a descrição de uma nova linhagem, esta no Rio Grande do Sul. A linhagem é nova, bem como a mutação que tem. Mas a descoberta se soma à identificação no estado, pelo mesmo grupo, da nova linhagem encontrada pela primeira vez no Rio de Janeiro, chamada B.1.1.28, a mesma que comprovadamente provocou um caso de reinfecção na Bahia, anunciado semana passada. Ela carrega a temida mutação E484K. Por isso, depois da emergência de novas linhagens britânica e sul-africana, foi a vez de o Brasil chamar a atenção do mundo devido a mutações do coronavírus. O premier britânico Boris Johnson disse ontem que estava preocupado em conter a entrada no Reino Unido da “mutação brasileira”. Johnson se referia à variante com a mutação E484K encontrada em Manaus e isolada de turistas japoneses. Ela pode estar por trás de ao menos parte do aumento de casos de Covid-19 registrados na capital do Amazonas. Muitos deles podem, na verdade, ser reinfecções. Manaus, não custa lembrar, é o lugar do mundo com o maior percentual de população exposta ao coronavírus, em torno de 70% na primeira onda.
Reinfecção enterrou esperança por imunidade coletiva A volta explosiva da Covid-19 em dezembro enterrou de vez qualquer esperança de imunidade coletiva natural alcançada pela ampla exposição ao vírus. A reinfecção, dizem cientistas, não é uma hipótese que possa mais ser descartada. A mutação E484K preocupa cientistas brasileiros. Para virologistas experientes como Amílcar Tanuri não há surpresa alguma. Avisos não faltaram de que a alta circulação levaria a adaptações do vírus. Desde meados de 2020, Tanuri alertava que uma variante mais transmissível poderia estar em circulação no Rio. O que era suposição virou fato em novembro com a identificação da linhagem B.1.1.248 pelo grupo integrado por ele, Vasconcelos e outros pesquisadores. — Existe, claro, preocupação com as vacinas. Se houver alguma mudança no genoma do coronavírus que possa afetar o alvo delas, isso precisa ser identificado para que as mudanças necessárias sejam feitas nos imunizantes — observa Tanuri. O grupo dele começou esta semana a sequenciar mais genomas de pessoas com Covid-19 do Rio de Janeiro. Querem saber o quão disseminada está a nova linhagem que descobriram e também quais os seus possíveis impactos. — Essa linhagem pode já estar no Brasil inteiro, já foi encontrada aqui, na Bahia e no Rio Grande do Sul. Sabemos que, se sequenciarmos, vamos encontrar. O problema é que infelizmente só há recursos para sequenciar pouco — acrescenta.