Primeiro foi encontrada a capa do celular cor de rosa logo na entrada do matagal. Mais no fundo do terreno, era possível ver a necessaire branca de bolinhas pretas com os objetos que estavam dentro espalhados ao redor, como um pequeno frasco de enxaguante bucal. Do lado oposto, escondido por trás do mato, as roupas de G., vítima de estupro no último dia 20, Dia da Consciência Negra. Os objetos foram descobertos em duas idas do noivo dela ao local do crime, um terreno praticamente abandonado em Bangu, depois que a vítima foi orientada pela Polícia Civil a buscar evidências do abuso sexual que sofreu. Como o Extra revelou na edição de ontem, depois de violentada, G. ainda foi humilhada por policiais militares que debocharam dela por estar nua na rua.
G. conta ter sido atendida por um inspetor da 34ª DP (Bangu) que, ao finalizar o registro de ocorrência, a orientou a buscar imagens que levassem ao estuprador:
O inspetor falou: 'Vê se arruma alguma câmera por lá'. Meu noivo teve que correr atrás, conta G., de 36 anos, relatando que fez o trabalho da polícia.
Coube ao noivo da vítima, H., um atendente de enfermagem, percorrer a Avenida Almirante Aymara Xavier de Souza, em Bangu, onde fica o terreno, procurar câmeras em estabelecimentos comerciais e imóveis residenciais, que tivessem flagrado o estuprador. As buscas começaram no dia seguinte ao crime, dia 21 de novembro, depois que G. passou por atendimento médico. Ela tomou um coquetel de medicamentos no Hospital Municipal Albert Schweitzer, em Realengo. Num dos vídeos gravados pelo profissional da rede de saúde, que usou seu celular para filmar o que foi captado pelas câmeras de rua, uma imagem mostra o vulto de uma pessoa que passa beirando o terreno e se aproxima da vítima. No entanto, a cena fica encoberta, em parte, pelos números que indicam a data e a hora do evento. Em outro vídeo, aparece um homem andando na via, perto do horário do crime, logo depois do estupro, mas a vítima teve dificuldades de identificá-lo. Quando ela não estava de costas para seu algoz, só pode vê-lo de perfil.
G. estava indo para o serviço, no qual trabalha como contadora, às 5h30 do dia 20, para pegar um ônibus na Avenida Brasil, em Bangu, quando foi atacada. O homem "vestido como trabalhador", de jeans, casaco preto e mochila, a intimidou com uma arma, obrigando-a a entrar num matagal. Além do estupro, ele levou o celular da vítima e ainda fez piadas infames. Depois do abuso, ele comentou que ela não precisava acordar tão cedo para ir trabalhar. O homem ainda lhe deu bom dia. Depois que o criminoso a abandonou no mato, ela saiu do terreno nua em busca de socorro. Há poucos metros dali a contadora encontrou um grupo de policiais que, segundo ela, a humilharam. Um deles lhe perguntou por que ela estava daquele jeito naquela hora na rua e ironizou: 'Só se der a farda para ela vestir'. A resposta foi dada quando um outro PM disse que não tinha nada para cobri-la. Até de maluca, conforme a vítima, ela foi chamada.
Senão bastasse a humilhação, ela se recorda que também não teve o tratamento adequado na delegacia.
O inspetor me enviou, no dia seguinte, duas fotos de um homem pelo WhatsApp. Tomei um susto. Dei um berro tão grande que a minha mãe veio me socorrer. O policial me perguntou: 'Vê se reconhece esse cara'. Na primeira, eu vi que era o homem que me estuprou, mas na segunda, achei que estava um pouco diferente, pois o vi mais de lado e ainda estava um lixo. O policial me responde: 'Assim fica difícil, pois é a mesma pessoa'. Meu noivo acabou levando os vídeos que pegou na vizinhança para ele lá, relata a vítima, Ele ainda me perguntou detalhes que são complicados para relatar a um homem, conclui.
O atendente de enfermagem diz que precisou fazer o trabalho da polícia, diante da omissão do poder público.
Foi uma sequência de descasos dos servidores públicos com um ser humano. Minha noiva só recebeu um bom tratamento do Hospital Municipal Albert Schweitzer, onde um médico obstetra a atendeu, junto com uma equipe formada por enfermeiro, assistente social e psicólogo. Ela estava péssima, em estado de choque, relata, No domingo eu fui buscar algo que pudesse ajudar nas investigações. Primeiro fui eu e a mãe dela no terreno. A gente ficou vasculhando o matagal para apontar para a polícia, sem mexer em nada. Fiquei fotografando as coisas: a capinha do celular, os objetos da bolsa dela. Mais tarde, minha cunhada e eu voltamos ao local. Achamos as roupas da minha noiva. Tinha até faca por lá. Durante a semana, com a entrada da delegada, a coisa mudou de rumo, um tratamento melhor, aponta H, que já ouviu dizer que há outras vítimas do estuprador na região onde ocorreu o crime.
Segundo ele, o terreno ocupa um amplo quarteirão, por onde passam dutos da Cedae.
Essa pessoa que fez isso com a minha noiva, cedo ou tarde, será presa. A omissão do estado, em todas as esferas, não vai permitir que esse crime fique impune. Hoje temos apoio do novo comando do 14º BPM (Bangu) e da delegada que assumiu o caso. São pessoas empenhadas. Tem cenas que nem eu, nem minha noiva, vamos nos esquecer. Um policial militar que não tirou sua blusa branca para cobrir o corpo dela e o funcionário público no Instituto Médico-Legal de Campo Grande que não tirou os pés de cima da mesa para nos atender. Este falou para voltarmos dois dias depois do ocorrido, porque não havia peritos no fim de semana. Isso não pode ser considerado normal. Ela pensou em desistir, mas eu falei: 'Temos que levar para frente'. Eles debocharam da minha noiva nua, precisando de ajuda! Ela foi vítima várias vezes naquele dia, relembra ele.
A Polícia Militar divulgou uma nota explicando: "A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que os policiais militares foram identificados e por determinação do Secretário Henrique Pires, a Corregedoria da Corporação está apurando o caso."
Já a Polícia Civil esclareceu que: "A vítima foi atendida na tarde de sábado (20/11), no Instituto Médico Legal (IML) de Campo Grande, sem prejuízo ao exame e à investigação. Sobre o atendimento na 34ª DP (Bangu), trata-se de uma distrital e os plantões obedecem a escala dos policiais da unidade. Não há impedimento de uma equipe ser formada apenas por policiais homens. A atual gestão da instituição reforça que pretende retomar a Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) em Campo Grande, após a demolição do prédio há seis anos. O projeto da reconstrução está em andamento e o concurso público possibilitará a formação do efetivo da unidade especializada. No momento, a DEAM Oeste está funcionando na 43ª DP (Guaratiba) e atende as demandas e denúncias da região".
Sobre o terreno, a Cedae explicou que no número informado da Avenida Almirante Aymara Xavier de Souza, em Bangu, não consta a existência de um terreno, de acordo com o Google Maps. Mesmo assim, a companhia mandou equipes ao local para apurar se a área onde houve o crime é da companhia: "Nosso setor de patrimônio programou para amanhã (dia 9) uma vistoria no local levando plantas de redes existentes na área para ver se o imóvel pertence à Cedae".