PEDREIRO FICA 04 ANOS PRESO E SÓ É INOCENTADO APÓS ENVIAR CARTA AO STF
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Publicado em 28/07/2022

Começa assim a carta que libertou João (nome fictício) da cadeia depois de quatro anos em regime fechado: "Aos excelentíssimos senhores ministros, declaro para os devidos fins que sou pessoa humilde, não podendo pagar um advogado particular. Pedindo então o auxílio de um defensor público".

A correspondência, escrita na cela de um presídio no interior de São Paulo, chegou a Brasília e foi encaminhada à Defensoria Pública da União (DPU), que assumiu o caso e entrou com um recurso no STF.

Para três dos cinco ministros da 2ª turma do Supremo, a detenção não seguiu a lei e o jovem fora condenado sem provas. Ele foi inocentado em fevereiro.

Hoje livre, João agora tenta lidar com as consequências dos anos encarcerados. "A prisão acabou com a minha vida. Parei no tempo", diz, na casa de sua mãe, com uma cópia da carta nas mãos — ele escreveu outras quatro, mas só uma foi anexada ao processo.

Não só ele parou no tempo, toda a família parou. Sua mãe por quatro anos sofreu com a ausência do filho, sentimento de impotência e falta de dinheiro para bancar um advogado particular.

"Qualquer um cobrava R$ 5 mil só para analisar o processo. A gente economizava, pedia emprestado pra parentes e amigos, mas não dava para manter", diz ela.

O dinheiro da família era tão curto que não sobrava nem para visitar João no interior.

"Sempre mudavam ele de cidade, a 300 quilômetros ou mais. A gente não tinha como pagar carro, gasolina, estadia... Estava tentando sobreviver aqui, fiquei quatro anos sem dormir direito, só pensando nele, naquela cadeia", conta.

'Nada de ilícito'

O caso de João começou em uma noite chuvosa no final de 2018, quando três pessoas foram assaltadas em frente a uma casa na periferia paulistana.

Eram três os ladrões, um deles armado. O trio levou um relógio, um celular e R$ 100. A Polícia Militar foi chamada, e passou a circular pelas ruas.

Uma hora depois, em uma ciclovia que liga vários bairros da região, os policiais "avistaram um indivíduo correndo em desabalada carreira", segundo o boletim de ocorrência.

Era João. "Eu estava voltando de uma balada, não sabia de roubo nenhum. Estava correndo porque chovia forte, e eu queria chegar rápido em casa. Quando passava embaixo de um viaduto, apareceram uns policiais atrás da pilastra", conta.

Os agentes relataram que não foi encontrado "nada de ilícito" com o jovem — o paradeiro da arma usada no crime é desconhecido. "Indagado acerca do roubo, este negou peremptoriamente a conduta", os PMs disseram ao delegado, mais tarde.

Os policiais então tiraram uma foto do jovem e a enviaram pelo WhatsApp para colegas que estavam com as três vítimas. Elas disseram ter reconhecido João pela imagem no celular. Ele foi preso em flagrante, ninguém mais foi detido.

Mais tarde, na delegacia, as três vítimas o reconheceram pessoalmente.

O problema é que todo o processo criminal que se seguiu, calhamaço que por anos mobilizou promotores, defensores, desembargadores e até ministros do STF, foi baseado nesse reconhecimento produzido de uma maneira considerada ilegal pela própria Justiça.

O artigo 226 do Código de Processo Penal determina que o reconhecimento de suspeitos tem de seguir algumas regras.

Pessoas parecidas fisicamente devem ser colocadas lado a lado, e a vítima vai apontar quem ela acredita ser o autor do crime. Ou seja, não é permitido colocar uma pessoa baixa, branca e loira ao lado de um homem negro, alto e corpulento.

Com João essas regras nunca foram seguidas. Na delegacia, as vítimas o reconheceram novamente, mas ele foi a única pessoa apresentada pelo delegado. Em audiência no fórum, aconteceu da mesma forma.

O argumento da defesa sempre versou sobre esse ponto: João foi reconhecido de maneira ilegal, e não havia outras provas contra ele.

"O reconhecimento fotográfico pode gerar identificações equivocadas, como já aconteceu inúmeras vezes. Hoje o entendimento é de que ele não pode servir como única prova. Quando há outras, é considerado como um ponto a mais para justificar a condenação", diz Gustavo de Almeida Ribeiro, defensor público federal que representou João no STF.

"Não quer dizer que a vítima aja de má-fé para prender um inocente, mas ela está em um momento de tensão, nervosismo, medo... É comum se confundir vendo uma foto isolada, fora de contexto", diz.

"Mas, no caso dele, não havia mais nada. A foto foi feita à noite, no escuro. Na delegacia, as vítimas dificilmente iriam mudar de opinião porque elas já tinham reconhecido pela imagem, e ele foi a única pessoa mostrada", diz.

O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) denunciou João, alegando que as provas "eram robustas e maciças". Citou como exemplo o reconhecimento e o testemunho dos policiais sobre o flagrante, esses, no entanto, não estavam no momento do crime.

Quando a Defensoria Pública de São Paulo pediu a revisão da sentença, o procurador José Antonio Franco da Silva respondeu que, na análise de roubo, "a palavra da vítima assume peso fundamental no contexto probatório para apontar a autoria, sendo certo que, em muitos casos, apresenta-se como única fonte."

Para ele "a utilização da fotografia do acusado não significou fundamento para a condenação, que está alicerçada no reconhecimento pessoal, realizado em duas oportunidades, afastando por completo eventual dúvida acerca da autoria."

Relator do caso no Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Antonio Carlos Machado de Andrade concordou com a tese do MP e manteve a condenação.

Mais tarde, três ministros do STF discordaram desse argumento e absolveram o jovem (leia mais abaixo).

Já na carta ao STF, o pedreiro contou toda a história sobre como foi reconhecido pelo WhatsApp. E explicou: "Em matéria criminal, tudo deve ser preciso e certo para que não haja possibilidade de desencontros na apreciação das provas."

'Julgaram pelo passado'

João conta que procurou o Código Penal na biblioteca da cadeia para entender seu caso e fundamentar as cartas enviadas à Justiça.

"Comecei a ler até entender a lei. Vi que reconhecimento por foto não era correto. Falei com funcionários do presídio, e todo mundo me falava que isso não existe, que eu tinha de recorrer. Alguém me orientou a escrever para Brasília."

Na correspondência, ele credita sua prisão ao preconceito por causa de uma condenação anterior, ele estava cumprindo regime semiaberto por um roubo. "Os policiais pegaram o primeiro que apareceu na frente, viram que eu tinha passagem e me prenderam", diz.

Sua mãe vai na mesma linha. "Julgaram meu filho pelo passado. Ele estava se recuperando, fazendo cursos, tinha arrumado um emprego. Ele me contou da primeira vez que ele errou. Mas dessa vez ele me disse: 'dessa vez eu não fiz, mãe'", conta.

 

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