A reportagem teve acesso, com exclusividade, aos depoimentos prestados para a força-tarefa que apura as responsabilidades pela ruptura da barragem de Brumadinho, tragédia que ainda contabiliza seus mortos. Até agora, 59 pessoas foram ouvidas, entre testemunhas e investigados. São depoimentos que levam o Ministério Público a afirmar: o que aconteceu em Minas Gerais não foi um acidente.
De acordo com as investigações, a Vale foi alertada em 2017 sobre os indícios de ruptura da barragem.
“As investigações até o momento, elas demonstram que não foi um acidente”, disse o promotor de Justiça William Coelho.
Segundo o último balanço divulgado na sexta-feira (8), a tragédia fez 197 mortos e 111 desaparecidos.
Acidente, diz o dicionário, é algo que não dá para prever. Segundo a Vale, empresa responsável pela barragem, foi isso que aconteceu em Brumadinho.
“A Vale é uma empresa extraordinária, e é uma joia brasileira que não pode ser condenada por um acidente que aconteceu em uma de suas barragens”, disse o presidente afastado da Vale, Fábio Schvartsman, no dia 14 de fevereiro.
Para a Polícia Civil e o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a história é outra e começa bem antes da tragédia.
“A força-tarefa trabalha com o ano de 2017 em que já há demonstração que a empresa já tinha ciência de indício de ruptura da barragem”, afirmou o delegado Bruno Cabral.
A engenheira civil Cristina Malheiros entrou para a Vale em 2011 e era responsável técnica pela barragem. Em depoimento, ela disse ter participado de um evento da Vale no fim de 2017.
“Esse trabalho eles faziam, convidavam gente para essas reuniões, discutiam o que que eles estavam entendendo nos estudos, e apresentava também um painel de consultores”, falou Cristina.
Na ocasião, uma consultora mostrou que a barragem tinha uma margem de segurança muito baixa caso ocorresse uma liquefação. Neste fenômeno, materiais sólidos viram líquidos e podem causar o colapso de uma barragem.
“Ela me reportou que preocupava que um sismo pudesse ser alguma coisa que gerasse liquefação, qualquer coisa que lá na estrutura gerasse, a gente poderia ter algum problema”, disse Cristina. “Mas ela nunca me disse nada”, concluiu.
Métodos alternativos
Segundo a investigação, ao saber do risco, em vez de tomar medidas concretas, a Vale apostou em outros métodos para calcular a estabilidade da barragem.
“Nós percebemos um esforço em alterar ou promover outras metodologias que aumentassem esse valor de segurança, o que não ocorreu”, disse o promotor de Justiça.
Como o risco continuava, a Vale tentou outra opção: instalar drenos para retirar água da estrutura, os chamados drenos horizontais profundos (DHPs).
Uma alternativa que, segundo a investigação, trazia riscos de um processo de infiltração conhecido como “piping”, um possível gatilho para rompimentos.
“Ao meu ver é uma coisa temerária porque o DHP é uma intrusão que se tiver qualquer problema pode induzir ‘piping’... podia ser um gatilho. Poderia ter sido feito com mais cuidado, mas eles...”, disse o consultor da TÜV SÜD, Arsênio Negro Júnior.
O consultor da TÜV SÜD, empresa alemã que prestava serviços para a Vale, disse que havia formas mais seguras de instalar os drenos, como usar pressão mais baixa e revestimento nos furos.
Após uma infiltração em junho de 2018, a Vale interrompeu na época a instalação dos drenos. Uma situação que, segundo o consultor, assustou a empresa.
“Eles se assustaram num desses eventos... por sorte. E foi isso que eles quiseram abandonar”, falou Arsênio.
Em depoimento à força-tarefa, Makoto Namba, outro consultor da empresa alemã TÜV SÜD, reconheceu que houve "barbeiragem" na instalação dos drenos.
“Mas o senhor que mencionou o termo barbeiragem”.
“Isso”.
“Foi uma barbeiragem?”.
“Sim, para dar um fraturamento hidráulico, não poderia ter dado isso”.
Namba é um dos técnicos que assinaram, em setembro de 2018, um laudo que atestava a estabilidade da barragem. Segundo ele, um ato técnico, mas realizado sob pressão da Vale.
“Existe uma pressão sutil. O Alexandre Campanha participou, ele estava na mesa e ele me perguntou: ‘a Vale vai assinar ou não a declaração de estabilidade?”, relembrou Namba.
“Nós temos elementos até o momento que apontam para uma pressão corporativa por parte da Vale em relação a consultores externos para que eles adotem determinadas posturas que fossem de interesse da empresa", falou o promotor.
A TÜV SÜD foi pressionada pela Vale pra emitir declarações de estabilidade de barragem apesar de conhecer a criticidade das estruturas da barragem 1 do Complexo do Córrego do Feijão”, atestou o promotor.
Em depoimento, Alexandre Campanha, gerente executivo da Vale citado pelo consultor que assinou o laudo, negou qualquer pressão. “Essas declarações do senhor Makoto elas são... foram criminosas, irresponsáveis e levianas”.
Ainda no depoimento, o delegado afirma que Campanha tinha conhecimento que centenas de pessoas poderiam morrer com o rompimento da barragem.
“Você tem um estudo dizendo que, se acontecer, estou prevendo que vidas serão perdidas. Quando o senhor viu esse documento qual a sensação que o senhor teve? Doutor, a sensação que eu tive foi sensação de incômodo. O senhor conversou com alguém ou esse incômodo foi algum incômodo que assim, o senhor guardou pro senhor? Não comentou com ninguém, o senhor levou pra casa e ficou quieto?”.
Campanha disse que falou com algumas pessoas, mas não lembra detalhes.
“Doutor, detalhes é difícil a gente lembrar”.
Depois da assinatura do laudo de estabilidade, outra medida da Vale foi trocar parte dos piezômetros da barragem, aparelhos que medem a pressão da água dentro da estrutura.
Dias antes da tragédia, os novos aparelhos, que eram automáticos, acusaram picos de pressão na barragem, mas a Vale considerou que eram erros de medição, um fato que ainda será apurado.
Cristina Malheiros, a funcionária da Vale responsável pela barragem, disse em depoimento que reportou a seus superiores todos os sinais de risco na estrutura.
“Então, eu entendo, dentro da minha posição de estar lá tudo o que eu poderia fazer para reportar à empresa o que chegava de documento, o que era reportado de problema, eu sempre reportei a todos os gerentes”.
Questionada se voltaria a trabalhar na barragem se tivesse todas as informações que tem hoje, a engenheira respondeu da seguinte maneira: “Nem eu e nem nenhum dos empregados que estavam lá. Esses consultores receberam milhões e deixaram a gente trabalhar lá sabendo disso?”. Ela começa a chorar.
Cristina, o gerente executivo Alexandre Campanha e outros nove funcionários da Vale chegaram a ser presos, mas respondem ao inquérito em liberdade.
A pedido do MPMG, os dois e outros 12 funcionários estão afastados das funções na empresa, inclusive o diretor-presidente, Fábio Schvartsman.
Em nota, a Vale informou que uma vistoria feita na barragem dois dias antes da tragédia não detectou risco de rompimento.
Disse ainda que todas as intervenções no local foram medidas normais de segurança e que nenhum depoimento de funcionário da empresa indica conhecimento prévio de risco de ruptura.
A defesa de Cristina Malheiros disse que ela sempre cumpriu normas técnicas de inspeção da barragem e só não morreu porque estava de folga naquele dia.
Alexandre Campanha, por meio de advogado, afirmou que todos os informes que recebeu atestavam a segurança da estrutura.
O consultor Makoto Namba afirmou, também por advogado, que havia elementos técnicos para atestar a estabilidade da barragem e que o questionamento da Vale era por prazos.
A defesa de Arsênio Negro Júnior não foi localizada.
Para os investigadores do caso, a apuração até agora indica que a tragédia de Brumadinho não foi acidente, mas um crime a ser punido.
“A força-tarefa, ela vai dar uma resposta para a sociedade, pode ter certeza disso”, afirmou o delegado Eduardo Figueiredo.