O ex-governador do Rio Sérgio Cabral (MDB) é ouvido nesta sexta-feira (5) na Justiça Federal. Ele pediu para ser interrogado de novo, depois que se tornou réu confesso, e disse que a propina de empresas de transportes no estado do Rio – via a Fetranspor, federação das empresas – começou no governo Moreira Franco, entre 1987 e 1991, passando ainda pelos governos de Leonel Brizola, Marcello Alencar, Anthony Garotinho e Rosinha Garotinho.
Os processos de Cabral: entenda
A audiência desta sexta é sobre a Operação Ponto Final, que investiga irregularidades no setor de transportes. Logo no início da audiência o ex-governador afirmou que foi "com o coração aberto". Além dos ex-governadores, Cabral também citou empresários, membros do Judiciário, deputados e o ex-prefeito Eduardo Paes.
O que disse Cabral:
‘caixinha da Fetranspor’ começou no governo de Moreira Franco;
no governo Brizola, o secretário de Transportes Pedro Valente administrava a caixinha, com ‘aval’ do governador;
em fevereiro de 95, eleito presidente da Alerj, Cabral assume a administração da ‘caixinha da Fetranspor’;
com os então governadores Garotinho e Rosinha Garotinho, a caixinha continuou no Executivo;
Garotinho comprou uma afiliada de TV com dinheiro da propina;
negociou "compra", por US$ 1,5 milhão, do apoio de Marcelo Crivella na eleição de 2008, junto com Eike Batista e Eduardo Paes;
caixinha também funcionava na Câmara dos Vereadores;
na campanha de 2006, recebeu R$ 5 milhões da Fetranspor.
intermediou dinheiro da Fetranspor para a campanha de Aécio Neves em 2014
Depoimento
Cabral citou o período anterior, comandado por Leonel Brizola, quando as empresas foram "encampadas", e houve desordem no serviço público.
"Moreira Franco é o governador, em 1987 e em 1990 é feita a recuperação das empresas [de transporte]. Cria-se na Alerj a primeira propina instituída para o deputado Gilberto Rodrigues, presidente da Alerj e, do ponto de vista jurídico, o procurador de Justiça [do Ministério Público] Carlo Navega dava soluções jurídicas na volta às suas mãos particulares. Ele colaborou com o retorno das empresas às mãos [dos empresários], e recebia junto com o governador Moreira Franco e [com o deputado] Gilberto Rodrigues, junto com o deputado Claudio Moacir, e membros do Tribunal de Justiça", disse Cabral.
Durante o governo Moreira Franco, Cabral foi diretor da Companhia Estadual de Turismo (TurisRio). Depois, segundo ele, Brizola "voltou com outra postura", e a caixinha foi sido administrada pelo médico e secretário de transportes Pedro Valente, com o aval de Brizola, de acordo com Cabral.
Em nota, Moreira Franco disse que "em situação processual e jurídica difícil, com diversas condenações que lhes ultrapassam a existência, condenados - candidatos a delatores - sentem-se imunes aos riscos da calúnia e da difamação, assim, volta e meia ousam imputar algo, de forma leviana, a alguém. Espera-se que esse desatino não conte com oculto estímulo de acusadores, ou magistrados, que lhes acenam com vantagens futuras na execução da pena".
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) disse que "não tem, até o momento, qualquer conhecimento acerca dos fatos relatados. O Procurador de Justiça Carlos Antônio Navega faleceu no ano de 2017."
'Administrador' da caixinha na Alerj
Cabral confessou que ele mesmo assumiu o controle do esquema de propina em 1995, quando era deputado e assumiu a presidência da Alerj.
"Em fevereiro de 95 fui eleito presidente da Alerj então passo a administrar a caixinha da Fetranspor. O responsável pela distribuição da propina do Executivo foi o secretário de Fazenda da época."
Ainda segundo Cabral, no governo de Garotinho, a caixinha da Fetranspor continuou no Executivo, agora supostamente administrada pelo ex-presidente do Tribunal de Contas do RJ, Jonas Lopes, condenado pela Lava Jato, e Augusto Ariston [ex-deputado, e ex-secretário de Transportes e da Casa Civil]. O mesmo teria ocorrido no governo de Rosinha Garotinho.
"Com o dinheiro da Fetranspor, Garotinho comprou a TV Band no Sul Fluminense. Usa uma pessoa chamada Mauro como um testa de ferro, tem um jornal O Diário, que é do Mauro mas na verdade é dele (Garotinho), e eu continuo presidente da Alerj cuidando da caixinha da Fetranspor nesse período".
Governou o estado entre 1999 e abril de 2002, quando deixou o cargo para se candidatar à Presidência da República. Na mesma eleição, Rosinha foi eleita governadora do Rio e ficou no cargo até 31 de dezembro de 2006.
Em nota, a defesa de Anthony Garotinho e Rosinha Garotinho diz "não haver uma única verdade no depoimento do ex governador Sérgio Cabral, sendo fantasiosas as acusações imputadas aos mesmos". "Assim, necessário esclarecer que durante a gestão dos ex governadores (família Garotinho), nunca ocorreu, ou chegou ao seu conhecimento, o pagamento de propina ou qualquer atividade inidônea em relação ao setor de transportes, bem como a aquisição de emissora de televisão e rádio. "
Garotinho nega também a acusação de ser dono de emissora de rádio e de televisão, "não obstante ser radialista com carteira assinada desde os 17 anos de idade", diz o texto.
Com relação ao depoimento de Cabral, a Band disse que "ao longo dos anos noventa, estava entre as afiliadas de sua rede a TV Sul-Fluminense de Barra Mansa, de propriedade da família Nader, em regime de representação comercial e distribuição de sua programação nacional". Ainda segundo a empresa, "somente em 30 de julho de 2007, a Radio e TV Bandeirantes comprou 100% das ações desta emissora, diretamente de seus proprietários, a referida família Nader. Estas alterações contratuais são públicas e estão devidamente registradas na Junta Comercial do Rio de Janeiro“.
Caixinha de Picciani
Cabral disse ter recebido, entre 2003 e 2006, quando era senador em Brasília, uma caixinha de Jorge Picciani de R$ 200 a R$ 300 mil, como forma de mantê-lo como o candidato do PMDB ao governo do Estado em 2006. Nesse período, por um projeto contrário aos interesses da Fetranspor sobre gratuidade de passageiros, ele teria ficado sem o recurso de propina.
"Em 2006 me elejo governador. Na campanha de 2006, a Fetranspor me deu cerca de R$ 5 milhões, somando primeiro e segundo turno. Jorge Picciani se reelege presidente da Alerj, onde continua administrando o caixa da Fetranspor. Havia muita reclamação dos deputados na época do Picciani: 'Ah, não está dando todo mês, não tô recebendo'. Minha filosofia era: 'É um regime presidencial e é com ele que eu trato, não perguntava quanto recebia mas tinha a informação de que recebia R$ 1 milhão por mês, mas não sei quanto dava para cada um. Para o Executivo eram R$ 420 mil por mês."
Em nota, Picciani disse que “o ex-governador, para agradar ao Ministério Público, falta com a verdade e me atribui acusações que carecem de provas". "Em minha vida pública nunca me envolvi com ilegalidade, pautei meus mandatos sem estrelismo ou oportunismo e sempre no interesse da população do Rio de Janeiro”, acrescenta.
'Compra' do apoio de Crivella
Cabral disse que negociou a "compra" do apoio de Crivella na eleição da prefeitura do Rio de 2008 por US$ 1,5 milhão, quando Eduardo Paes foi ao segundo turno com Fernando Gabeira – Crivella foi o terceiro colocado. Paes, segundo ele, foi buscar o dinheiro na casa do empresário Eike Batista, ao lado do próprio Cabral e de Crivella.
"Ele [Crivella] me liga e pede uma conversa no Palácio das Laranjeiras em 2008. Recebo à tarde/noite e ele me diz o seguinte: 'Olha, estou sendo pressionado a apoiar o deputado Gabeira. Não é do meu agrado pelas minhas convicções religiosas, visão do mundo. Mas o Armínio Fraga [ex-presidente do Banco Central], que estava muito exposto na campanha do Gabeira aparecendo na televisão pedindo voto, me ofereceu 1 milhão de dólares. E, então, eu vou apoiar o Gabeira se vocês não fizerem nada'. Eu e ele, sem testemunha. Eu falei: 'Você me dá um tempo'".
O tempo, segundo o ex-governador, foi pra pedir dinheiro ao empresário Eike Batista. "Eu falei [para o Crivella]: 1 milhão e meio de dólares, você aceita? Ele falou: aceito", contou Cabral, antes de relatar o suposto pedido ao empresário.
"Eu preciso de um milhão e meio de dólares para dar ao Crivella, e tem que ser amanhã, porque o segundo turno já estava correndo. Aí ele falou: 'Tudo bem, não tem nenhum problema, só que tem que ser muito cedo porque eu vou sair as 8 horas da manhã com esse grupão todo para o Açu. Tudo bem, então 6 e meia da manhã na sua casa'. Aí marquei com o Eduardo Paes na minha casa às 6h, contei para ele a situação toda", acrescentou.
Fernando Gabeira disse que duvida que Crivella tenha dito isso para Sérgio Cabral e que ignora qualquer negociação sobre apoio à sua candidatura à Prefeitura do Rio. “Ignoro esse fato, inclusive nunca vi tanto dinheiro na minha vida. Quem garante que o fato ocorreu? Eu duvido que tenha acontecido, porque nunca tivemos 1 milhão de dólares para a nossa campanha”. Ainda segundo Gabeira, Armínio Fraga nunca faria esse tipo de contato - oferecer R$ 1 milhão de dólares pelo apoio de Crivella - sem consultá-lo, e nunca houve essa conversa entre eles.
Armínio Fraga disse que as informações de Cabral são mentirosas e não procedem.
Fernando Martins, advogado de Eike Batista, informou que Eike Batista não é parte no processo e que sempre desenvolveu suas atividades empresariais dentro do marco da legalidade.
Em post no Facebook, Crivella chamou de "grande mentira" o relato de Cabral. "Amigos, fiquei sabendo há pouco que o ex-governador Cabral disse que há 10 anos teria comprado meu apoio ao Eduardo Paes. Mais uma grande mentira plantada para tentar desestruturar a minha gestão e minhas convicções como homem público. Jamais conseguirão manchar a minha honra", disse. Ainda segundo Crivella, o apoio para Eduardo Paes aconteceu porque Paes era o candidato mais alinhado com os evangélicos.
Procurada pelo G1, A defesa de Eduardo Paes ainda não se posicionou sobre as denúncias de Cabral.
Cabral ainda disse que Crivella "foi fazer queixa" ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva porque não tinha sido "aproveitado" em seu governo. O ex-governador então, teria revelado a suposta compra do apoio de Crivella.
"O senador Crivella foi fazer queixa ao presidente Lula de eu não ter aproveitado ele no governo e eu dei ciência ao presidente Lula [sobre a compra do apoio a Paes]. Presidente Lula sabia que eu tinha pago propina. Disse a ele na sala do Palácio do Planalto: 'o senhor me desculpe, mas eu comprei o apoio do Crivella".
A assessoria do ex-presidente Lula afirma que são falas que não procedem e não têm provas, "de uma pessoa que deve estar procurando um acordo de delação premiada".
R$ 30 milhões a Pezão
Cabral disse também que a Fetranspor deu R$ 20 milhões para a campanha dele em 2010, quando foi reeleito governador do estado. E, nas eleições seguintes, em 2014, deu R$ 30 milhões para a campanha que elegeu o seu vice, Luiz Fernando Pezão.
O dinheiro tinha muitos destinatários, segundo Cabral. Entre eles: R$ 6 milhões para o Tribunal de Contas do Estado, R$ 1 milhão para cada conselheiro; R$ 4 milhões para Júlio Lopes, então secretário de Transportes; e R$ 6 milhões iriam para Régis Fichtner, secretário da Casa Civil, mas, segundo Cabral, ele só recebeu R$ 2 milhões.
Cabral disse também que, ao longo de 2014, recebia R$ 1,5 milhão por mês, assim como Jorge Picciani, e confirmou o valor total de propina que conta na denúncia: R$ 144 milhões.
Sobre o relato de Cabral nesta sexta, a Fetranspor diz que "adotou uma política rígida de compliance e de governança, com uma nova gestão que prioriza a transparência, a valorização dos controles internos e o respeito às normas que regulam o setor de transportes". A entidade acrescenta que desde setembro de 2017, "é presidida por um novo executivo, sem qualquer ligação com a gestão passada e com os fatos relacionados às investigações em andamento, com as quais tem tido colaboração total".
Judiciário
Sérgio Cabral disse que foi achacado por parlamentares federais e que teve que fazer trato com membros do Tribunal de Contas da União e do Judiciário.
"Fui achacado por parlamentares federais, tive que fazer trato com ministros do TCU e do STJ. Me coloco à disposição do MP [Ministério Público], tive que fazer, organizar... deputados e senadores, enfim. Tive que atender a presidente da República para beneficiar pessoas. Eu deveria ter dito não", disse, sem citar nomes.
Cabral ponderou ainda que o Rio de Janeiro não é o único estado dominado pela "praga da corrupção", como chamou.
"O que aconteceu com o Rio de Janeiro aconteceu, com certeza, com todos os estados da federação", dizia Cabral quando foi interrompido pelo juiz Marcelo Bretas, que perguntou se era uma conclusão ou um achismo. "Em parte, conhecimento, em parte, informação", rebateu.
FGV: 'biombo legal'
O ex-governador disse ainda que um dos esquemas que ainda não foi descoberto pelos investigadores é sobre um estudo "encomendado" a Fundação Getúlio Vargas (FGV) durante a licitação das linhas intermunicipais.
O material, na prática, teria sido feito pelo presidente do Detro, Rogério Onofre, e foi determinante na vitória das empresas. O acordo incluiria propina de R$ 30 milhões para a campanha de Pezão e outros valores divididos entre o grupo criminoso.
Cabral disse que um setor da FGV funcionava como "biombo legal", embora seja uma "instituição séria" na opinião dele, para dar aparência de legalidade a falcatruas. Ele atribuiu a irregularidade à FGV Consultoria, comandada por Cesar Campos.
Na prática, prestadoras de serviço e governantes corruptos escolhiam as empresas que ganhariam a licitação e a forma como a obra seria realizada. O estudo encomendado serviria para embasar a prática irregular.
Em nota, a FGV disse: “A FGV não teve conhecimento ou acesso a qualquer depoimento do ex-governador Sérgio Cabral, porventura prestado nessa data e, tão logo seja cientificada a respeito, adotará as providências cabíveis para preservação de sua imagem e defesa de sua trajetória, que tanto tem contribuído para o desenvolvimento do Brasil ao longo dos últimos 74 anos, a ponto de ser atualmente, a mais respeitada instituição educacional da América Latina. Sua atuação, bem como de seus membros, sempre foi pautada pelo respeito a ética, à legalidade e ao interesse público, sendo abominável e atentatório ao próprio País a tentativa de macular a história de uma instituição que está entre as dez mais conceituadas do mundo em seu segmento de atividade”.