Até menos de dois meses atrás, a médica neurologista Bruna Villela, de 42 anos, dividia seus dias entre seu consultório, em Niterói, e o Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, na Lapa, no Rio de Janeiro, onde dava expediente. Com quase 15 anos de carreira, frequentar uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) era atividade corriqueira decorrente de sua profissão e também das histórias ouvidas de seu pai, que é médico intensivista, hoje aposentado. Casada e mãe de uma menina de 5 anos, Bruna tinha uma vida estável. Tinha.
Hoje, as marcas em seu rosto começam pouco a pouco a sumir. Vão-se os últimos resquícios de mais de uma dezena de plantões trabalhados sob rigoroso esquema de paramentação. Para amenizar a dor da pele ferida pelas máscaras de uso contínuo, Bruna tentou subterfúgios.
Comprou ela mesma um estoque de um modelo mais confortável do que o usado na rede pública, encontrado numa rara oferta na internet. Para amortecer a fricção dos movimentos da face ao respirar com a superfície dura do equipamento, colou protetores de calcanhar na parte mais rígida. Resultado: menos marcas.
Truques de sobrevivência numa rotina quase diária de 12 horas ininterruptas salvando e perdendo vidas no hospital transformado, desde março, em referência para o tratamento de Covid-19 no Rio. Outro truque para perseverar diante da nova realidade é cobrir os móveis de sua casa vazia com um lençol, para evitar o acúmulo de poeira. Nas poucas horas que sobram entre os plantões e a desinfecção de seus pertences, Bruna não quer perder tempo fazendo limpeza. Prefere conversar, por meio de chamadas de vídeo, com sua filha, de quem se separou desde o início da pandemia. Tanto a menina quanto seu marido tiveram de sair do apartamento em Icaraí, Niterói, e passaram a viver com o pai de Bruna, enquanto durar o caos.
Para aguentar a barbárie que presencia diariamente na UTI do instituto, Bruna foi aconselhada, pela psicóloga que atende a equipe, a externar sua experiência na pandemia e resolveu escrever um diário como forma de aliviar a angústia. “Não tenho com quem falar em casa. Então, comecei a escrever”, explicou. Reunidos nesta edição de ÉPOCA, os relatos foram escritos, em geral, à noite, quando ela se deitava para dormir, depois de um longo processo profilático. Em algumas ocasiões, vencida pelo cansaço, Bruna dormiu enquanto digitava. A médica descreve desde suas expectativas com a nova rotina, logo no início da pandemia, até a dor e o desespero que se instalam enquanto os fracassos se empilham na forma de vidas perdidas.