“Caindo de tanto susto”. É assim que Claudiney Chaves Coutinho resume sua sensação após resgatar Ricardo Aparecido da Silva, de 49 anos, no dia 25 de janeiro de 2019.
Ricardo era uma dos motoristas que trabalhava conduzindo caminhões na mineradora Mineral Brasil e, naquele dia, seguia o trajeto de sempre, dirigindo pelas estradas de terra até a mineradora Ibirité. O serviço consistia em levar minério bruto de um local até o outro e retornar pelo mesmo caminho para um novo carregamento. Às 12h28 daquele dia, a vida dos trabalhadores que estavam na mina Córrego do Feijão, em Brumadinho mudaria para sempre: estava para se iniciar o maior acidente de trabalho do Brasil.
Ricardo afirma que, nessa época, não eram claras as instruções para onde se abrigar em caso de emergência.
“Não havia sinalização e nem treinamento, caso algo ocorresse”, disse.
O motorista chegou a ouvir pelo rádio do veículo sobre o rompimento de uma barragem na mina Córrego do Feijão, mas não deu tempo de fazer muita coisa: a lama que descia com violência atingiu o caminhão, que foi arrastado por 200 metros e teve o pára-brisas destruído.
Não muito longe dali, José Leonardo de Morais, de 43 anos, trabalhava na coleta de lixo da região. Todas as segundas, quartas e sextas-feiras o caminhão percorria o trajeto entre a mina Córrego do Feijão e o distrito de Casa Branca. No volante estava Alcione Borges, que em uma tentativa bem sucedida de escapar da avalanche de lama, conduziu o veículo rapidamente até o ponto mais alto da região, conhecida como Cerradão. Não havia sinal de telefone, acesso à água e nem energia naquele lugar, mas havia o medo de que uma segunda barragem se rompesse e a aflição de saber que os amigos e familiares poderiam estar entre as vítimas.
Além do desespero, as histórias desses três personagens se ligam por outro fio: a busca pela justiça. Ricardo, Alcione e José processaram a Vale para terem direito a uma indenização por conta dos danos e traumas trazidos com a tragédia-crime.
Em 2021, veio uma primeira vitória: a Justiça determinou que eles receberiam uma indenização de R$ 150 mil. O valor foi definido a partir de um Termo de Compromisso assinado entre a Defensoria Pública e a Vale a fim de compensar danos à saúde mental dos envolvidos na tragédia. Contudo, após recurso apresentado pela Vale, nos três casos, os valores de indenização foram reduzidos por uma decisão judicial na segunda instância.
TJ reduz indenização e minimza dores dos atingidos
A situação não é exclusiva para Ricado, Alcione e José. Ao julgar recursos da Vale contra as indenizações, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), de modo geral, reduziu os valores das indenizações em quase 75%, como indica uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab).
O estudo analisou 319 decisões judiciais — dentre as 464 publicadas até março do ano passado — e atesta a dificuldade enfrentada por moradores de municípios mais afastados para obterem compensações pelos danos que sofreram.
Apesar de serem impactados pela contaminação do rio Paraopeba, que afetou a captação de água potável, o consumo e as irrigações plantações agrícolas nas áreas rurais, muitos afetados não conseguem êxito nos processos judiciais. Dos 29 casos com decisões favoráveis aos atingidos em segunda instância, 19 envolvem habitantes de Brumadinho.
A gerente jurídica do Nacab, Sarah Zuanon, afirma que o estudo não só aponta o problema de como o TJMG tem tratado os casos, mas também aponta uma possibilidade de solução. “Um caminho é tratar essas indenizações dentro do processo coletivo. Dessa forma, é possível estabelecer parâmetros para dizer quem são as pessoas atingidas pelo rompimento, os danos que as pessoas sofreram e quanto vale cada dano causado”, explica.
No caso do gari José Leonardo, o desembargador João Cancio menciona na sua sentença que apesar de o trabalhador ter passado por uma situação de considerável desgaste emocional naquele 25 de janeiro, “não há comprovação” de que esteja passando por tratamento psicológico em função do ocorrido, não faz uso de medicação, “de modo que o abalo psicológico sofrido não perdura no tempo de forma gravosa a justificar a quantia arbitrada em sentença”. Dessa forma, o magistrado achou por bem reduzir em 80% o valor indenizatório fixado pelo juiz de primeira instância. A ação ainda tramita na justiça.
“Por precisar trabalhar, até hoje, naquele local, me traz memórias ruins. Meus dois melhores amigos morreram; um deles doou sangue para mim quando me acidentei em 2009. Mais de 20 anos de amizade acabaram em questão de segundos. Brumadinho acabou para mim”, desabafa ao relembrar das perdas.
No caso de Alcione, a justificativa proferida pelo desembargador Nicolau Lupianhes Neto é de que a redução da indenização para R$ 20 mil, compensaria “o dano moral, sem provocar enriquecimento da parte lesada”. Ou seja, para o magistrado, manter o valor inicial da indenização em R$ 100 mil seria corroborar para o aumento de patrimônio da vítima.
Ricardo, morador de Mário Campos, cidade localizada a 14 km do local da tragédia, teve sua participação recusada no programa de transferência de renda criado pela mineradora e gerido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) desde 2021. Por falta de acesso a apoio financeiro e a assistência psicológica por parte da empresa mineradora, ele entrou com uma ação judicial em 2019, buscando uma compensação de R$ 150 mil pelos danos causados.
A solicitação foi rejeitada inicialmente pela 2ª Vara de Brumadinho, cujo juiz, além disso, determinou que Ricardo pagasse as custas do processo e 10% do valor da causa em honorários advocatícios. Após apelação da defesa, a sentença foi modificada e o homem passou a ter direito para R$ 30 mil, em favor do homem que foi resgatado pelo colega e arrastado dentro de um caminhão pela onda de lama que despencou da barragem ad Vale.
O relator do processo, Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, ainda menciona que o valor estabelecido é irrisório perto do lucro da Vale: “conforme amplamente reportado e divulgado por ela própria, encerrou o ano de 2022 com o lucro líquido de R$95,9 bilhões”. O processo continua, e até o momento, o motorista não recebeu nenhum pagamento por parte da empresa.
Para comentar as decisões, a Itatiaia ouviu os advogados trabalhistas Solimar Rossi, Janice Real e Sabrina Tergilene para entender os critérios para a concessão das indenizações. comentar as reduções das indenizações.
Quais critérios a Justiça utilizou para determinar a redução nas indenizações e como isso se alinha ou difere de decisões anteriores?Solimar Rossi: Alguns juízes afirmam que adotam os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o que não dá para entender, porque a Vale é a segunda maior mineradora do mundo com um lucro líquido de bilhões de dólares ao ano. Sendo assim, indenizar uma pessoa com R$ 20 mil é como se a empresa entregasse um grão de areia enquanto possui um oceano em patrimônio. A Justiça de primeira instância está dentro do critério estabelecido pela própria Vale, pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público, quando assinaram o termo de compromisso para indenizar as vítimas do rompimento. Apesar disso, quando a ação chega no Tribunal, não é observado o princípio da isonomia.
Como essa redução pode afetar a busca por justiça e compensação por parte das vítimas e seus familiares?
Janice Real: Na verdade, ela traz um prejuízo para as vítimas, porque essa redução vai afetar o conceito de punição para a Vale. Ela não só destruiu o meio ambiente, ela causou a destruição de uma cidade, causou a destruição de famílias e a população de Brumadinho em si está doente. Atualmente, tem muitas pessoas que precisam de atendimento psicológico e psiquiátrico, mas, infelizmente, nem todo mundo lá tem acesso ao atendimento público e não tem condições de custear esse tratamento no setor privado. É importante destacar que, esse tratamento, dado a dimensão da tragédia, não se resolve em poucas consultas: é a longo prazo. A redução nas indenizações impactaria diretamente na busca de tratamento médico para que essas pessoas consigam seguir em frente.
Existe a possibilidade de recurso para reverter essa decisão ou buscar uma compensação mais justa?
Janice Real: Existe. Os juízes de Brumadinho, que têm contato direto com a situação vivenciada pela cidade, quando analisam a documentação, rapidamente percebem que o caso é de condenação e a indenização é mantida. No entanto, o que estamos percebendo é que, principalmente nas instâncias superiores, é manutenção da redução das indenizações.
Qual o principal desafio enfrentado pelos advogados que representam os afetados em Brumadinho?
Sabrina Tergilene: A meu ver, o principal desafio é chegar na valoração justa para que essas vítimas se sintam minimamente compensadas pelos danos que elas passaram.
As decisões judiciais podem impactar a responsabilidade das empresas envolvidas e a percepção pública sobre casos de desastres ambientais e industriais?
Sabrina Tergilene: Não só acredito nisso como já acontece. A forma com o Judiciário tem conduzido as sentenças, pode empoderar inclusive a negligência dessas empresas em tomar cuidado com as cidades ao redor de onde elas estão instaladas, com seus trabalhadores e a duvidar dos prejuízos que elas vão arcar caso algum desastre como esse venha acontecer. Isso alimenta o sentimento de impunidade entre as vítimas.
O que deveria ser feito para dar suporte para que situações de reduções como as retratadas não aconteçam?
Solimar Rossi: Perspectivas existem, por meio do Legislativo lá e Brumadinho. No entanto, se não houve um envolvimento político maior do Congresso Nacional ou no Senado, dificilmente algo vai mudar. É tentar convencer que a Vale é uma empresa muito poderosa economicamente, politicamente, brigando com uma cidade arrasada que se vê como uma formiguinha nessa batalha. Trazer isso para o debate político, protege inclusive pessoas de novos casos que possam acontecer.