A minha vida, de dois anos para cá, mudou totalmente. Eu vivia na minha casa própria em Marechal Hermes com o meu marido Evaldo que, na família, sempre chamamos carinhosamente de Duda, e também com o nosso filho, Davi. Desde que tudo aconteceu, naquele dia 7 de abril de 2019, eu nunca mais voltei. Só tirei minhas coisas de lá. E nós até precisávamos voltar, porque hoje vivo pagando aluguel numa casa que não é minha. Eu queria muito tentar voltar, mas não dá. Nós ainda não conseguimos. Acho que, na verdade, sinto que nunca mais conseguiremos ser as mesmas pessoas. Tenho tentado retomar a vida por mim e pelo meu filho, mas a gente convive diariamente com a saudade. Eu não perdi só o meu esposo. Como sempre digo, eu perdi um grande amigo, grande pai, o homem que era tudo para mim.
Às vezes eu paro para pensar e, refletindo, percebo que não consigo até hoje entender o que aconteceu naquele dia. Não tinha porquê aquela quantidade de tiros, não havia motivo para que alguém fizesse aquilo conosco. E, depois de tudo, vai ficando um vazio, uma tristeza. Em meio a tudo isso, também preciso ser forte, porque, agora, tenho que ser pai e mãe para o Davi, a quem tenho dedicado amor em dobro e tratamento psicológico contínuo. Hoje, ele tem 9 anos. Aliás, foi agora, no domingo, que o notei um tanto quanto triste e o encontrei chorando no canto da casa. Ele só me disse: "Você sabe porque eu estou chorando".
É um trauma. Algo que também nos visita todos os dias e vai ficar para o resto da vida. O Davi precisou mudar de escola para ter uma nova rotina e teve medo quando aqueles homens deixaram a cadeia para responder em liberdade. Eu sou técnica de enfermagem e antes me desdobrava para trabalhar em dois empregos, mas acabei demitida... Exatamente porque não estava conseguindo conciliar minhas rotinas, cuidar do meu filho e ainda lidar com tudo o que estava acontecendo. Hoje, graças a Deus, trabalho numa clínica em Botafogo, mas ainda tenho medo quando vou à rua. Entro em pânico toda vez que vejo militares. São pessoas que eu sei não têm nada a ver com o que aconteceu, mas, infelizmente, acabo vendo com outros olhos. Aqueles homens que estavam lá naquele dia deveriam estar nos defendendo, e não foi o que aconteceu.
Confesso que, até hoje, ainda não assisti aos vídeos que os moradores fizeram dos disparos contra o nosso carro. O coração acelera. Não me sinto preparada. Mas, quando se fala em 80 tiros, ou 257 tiros, que seja, eu não sei... Logo, lembro nitidamente daquela quantidade de cápsulas douradas pelo chão. Era uma quantidade muito grande. Aquilo me assustou muito.
É um momento que eu revivo todos os dias, a todo o tempo. Desde que acordo até o momento de dormir. Sou uma sobrevivente de 257 tiros. Sobrevivi a tudo aquilo. Não tenho como esquecer, como não reviver, não lembrar sempre. Eu lembro de absolutamente tudo daquele dia, o pior da minha vida.
Nós estávamos a caminho do chá de bebê de uma amiga. Aquilo que vivenciei, eu não desejo para ninguém. Só o dono de uma dor como essa que eu sinto sabe como dói... Perder uma pessoa que você ama, como eu perdi o meu esposo, da forma como aconteceu, foi tudo muito dolorido. É muito difícil de explicar o quanto foi desesperador, principalmente sabendo de quem foi que partiram os tiros, da forma como foi. É uma cena que nunca vou esquecer. Assim como também nunca vou esquecer a forma como eles me retribuíram, mesmo depois de ver o meu desespero perante o corpo do meu marido. Eu estava em pânico, pedindo ajuda, enquanto alguns deles debochavam. Nunca apagarei da minha memória o rosto de um deles, que se aproximava em tom autoritário, inclusive repetindo que era a autoridade, e que até dava risadas com a arma em punho. Em nenhum momento esboçaram qualquer iniciativa de querer ajudar, reparar o erro. A preocupação deles era clara: queriam dizer que nós estávamos errados. Mas o Evaldo não estava nem correndo com o carro, era uma rua que nem permitia isso. Não desejo nada disso nem para o meu pior inimigo.
Já se passaram mais de dois anos. Fiquei sabendo na semana passada que o julgamento adiado, que seria no dia 7 de abril, seria remarcado agora para o próximo dia 7 de julho. Desde então, o que estou sentindo é uma mistura de medo, ansiedade... tudo junto. O medo é de o julgamento ser adiado de novo, mas também é medo da impunidade, de que a justiça não seja feita, que eles tentem mais uma vez banalizar o caso do meu esposo. A ansiedade, ao contrário, é para que tudo se resolva e eles sejam punidos.
Eu preciso acreditar na justiça, e que a defesa não vá repetir o que eu li nas considerações finais, de que o Evaldo passou por barricadas. Um absurdo, uma tentativa que chega a ser ridícula de manchar a imagem do meu esposo. Eles sabem que não era essa a imagem dele. Um homem do bem, chefe de família. Ainda assim, eu gostaria que todos eles soubessem que eu não desejaria para eles, nem para a família deles, o que a minha família passou naquele dia e tem passado até hoje: de uma família destruída, da falta de um pai. Destruíram minha família, meu lar. Então, preciso ter fé em Deus. Não pode ser só mais um caso. Eu clamo muito por justiça, que eles se coloquem por pelo menos um segundo no meu lugar. Eu preciso que a minha vida ande. Hoje ela está estagnada. Ainda estou presa no meu passado, porque ele continua sendo o meu presente.
Me apego também às lembranças do Duda. Agora, já consigo mostrar fotos dele para o Davi. Deixo as fotografias na sala e também no telefone, onde nada mudou: elas continuam as mesmas na galeria e no meu papel de parede. No começo, quando tudo ainda era muito recente, eu tentei esconder as coisas dele, mas agora ele diz que já está grande, já sabe mexer na internet. Ele diz: "Mamãe, eu já sei de tudo". E sabe mesmo. Ele sabe, por exemplo, do julgamento que está marcado para o dia 7. Ele tem dito que quer muito ir, mas eu ainda estou avaliando e vou ver, também, com a psicóloga dele. A minha família é contra, prefere que eu o deixe fora disso tudo. Mas ele falou para mim que gostaria muito de olhar na cara das pessoas que fizeram aquilo com o pai dele. Foi algo que mexeu muito comigo.
Eu passei quase 30 anos da minha vida com o Duda, que era conhecido assim entre a gente porque a minha família, que logo que o conheceu o adotou de cara, dizia que ele era parecido com o Duda daquela dupla de funk William e Duda, que cantava o Rap do Borel na época. Eu fui parte da vida dele e ele foi toda a minha história. Éramos adolescentes quando nos conhecemos. Morávamos no mesmo bairro da Zona Norte, Marechal Hermes, e, num primeiro momento nem tínhamos intenção de namoro, nem nada, mas foi acontecendo. O Evaldo pediu minha mão ao meu pai primeiro. Depois, pediu à minha mãe. Sempre fomos muito independentes desde bem novinhos, trabalhadores. Aos poucos, fomos construindo nossas coisas, moramos um tempo na casa do meu pai, que adorava ele por ser uma pessoa de caráter excepcional, até que compramos nossa primeira casinha em Marechal. Essa, para onde eu ainda espero retornar. Ele foi o cara. Pessoa maravilhosa, meu grande amor, e fizeram o que fizeram com ele. Enquanto isso, a Justiça vai se arrastando.
Infelizmente, já vi e ainda vejo muitos casos como o do Evaldo. Os certos acabam pagando pelos errados. Os inocentes acabam pagando pelos culpados. Eu confesso que tenho muito medo que isso aconteça. Mas não vão conseguir nunca manchar a imagem do Duda, que não era nenhum bandido ou assaltante, como chegaram a alegar. Quem nos conhece sabe que nós somos pessoas do bem, somos trabalhadores. Meu marido morreu inocente. Assassinaram o meu esposo e não deram nenhum tipo de ajuda. Me tiraram meu melhor amigo, uma pessoa cheia de vida, do bem, com tanta garra e força de viver. Quem era para nos proteger, nos assassinou.
Hoje, graças a Deus, posso dizer que minha família, que na maior parte do tempo me chama de Guiga, um apelido que ganhei da minha irmã na infância, é a base de tudo para que eu consiga seguir: meus pais, meus irmãos, amigos e meu filho, que é a minha fortaleza. As homenagens feitas de lá para cá para o Evaldo também me orgulham muito. Meus amigos sempre quando veem algo compartilham comigo, seja numa arte, numa letra de rap que cita os 80 tiros pedindo por justiça. É muito satisfatório, porque o Duda é muito merecedor de homenagens lindas que as pessoas fazem por ele. Ele era uma pessoa muito especial, merecedor de todas as palavras positivas. Eu sigo acreditando.